Demanda por combustíveis renováveis aumenta enquanto etanol surge como alternativa mundial
Quando os principais diplomatas do mundo chegaram ao Brasil para reuniões do G20 no início deste ano, eles foram recebidos por uma frota de carros carregando uma mensagem de orgulho nacional: “Movido a etanol brasileiro”.
Desde que o país latino-americano decidiu, na década de 1970, reduzir sua dependência de petróleo e gás importados, o etanol tem desempenhado um papel crucial na matriz energética do Brasil.
A grande maioria dos carros vendidos hoje no país funciona com tecnologia de combustível flexível que permite o uso tanto de gasolina quanto do biocombustível, que é quase 40% mais barato e reduz as emissões de carbono em cerca de 75%.
Com um clima favorável e terra abundante para cultivar os ingredientes primários – cana-de-açúcar ou milho – o Brasil emergiu, ao lado dos Estados Unidos, como um dos maiores produtores e exportadores mundiais de etanol. Na última década, a produção nacional aumentou mais de 28% para atingir 222 milhões de barris no ano passado.
“Além de melhorar nosso painel de emissão de carbono, o etanol também cumpriu uma missão econômica de reduzir a dependência de importações de combustíveis à base de petróleo”, diz Thiago Duarte, chefe de pesquisa de ações do banco de investimentos BTG.
E, no centro dessa indústria, está a Raízen, sediada em São Paulo – o maior produtor mundial de açúcar e etanol de cana-de-açúcar, e operadora de negócios de eletricidade, distribuição de combustíveis e varejo.
Entre 2019 e o ano passado, as receitas da Raízen mais que dobraram para R$ 245 bilhões (US$ 47 bilhões) em relação a R$ 120 bilhões, segundo dados da empresa, colocando-a em 394º lugar na última lista da FT-Statista das empresas de mais rápido crescimento nas Américas. No mesmo período, os lucros aumentaram de R$ 2,25 bilhões para R$ 2,44 bilhões. A Shell e o conglomerado brasileiro Cosan detêm cada um 44% da empresa, com os restantes 12% listados publicamente. A capitalização de mercado da Raízen é atualmente em torno de R$ 4,75 bilhões.
Parte do crescimento da empresa foi impulsionada por um desempenho sólido em seus negócios de distribuição e eletricidade. Mas os executivos estão mais animados com o etanol, especialmente o chamado etanol de segunda geração, que é produzido a partir do bagaço restante da cana-de-açúcar triturada. Como sua produção é sustentável, usando apenas o subproduto residual, esse tipo de etanol é classificado como um biocombustível avançado.
“A maior parte do crescimento está vindo da produção renovável de biocombustíveis avançados – é aí que está o núcleo do nosso crescimento”, diz Ricardo Mussa, CEO. “Até dois anos atrás, estávamos usando apenas um terço da energia, diretamente o caldo de cana. Agora, desenvolvemos tecnologia que extrai outro terço, agora do bagaço, inserindo uma enzima nele.”
Grande parte da demanda é impulsionada pelo Japão, Califórnia e, em particular, Europa, que impôs requisitos rigorosos para renováveis, mas reluta em trocar terras agrícolas pela produção de etanol – o chamado debate alimento versus combustível. “Não tenho problemas com a demanda hoje”, diz Mussa. “No começo, dissemos ‘vamos testar o mercado’ e ver se estaria disposto a comprar grandes volumes por um longo período de tempo com garantia de preço mínimo. E, para minha surpresa, eles queriam tudo o que tínhamos.”
Ele diz que o etanol de segunda geração está sendo usado em combustíveis misturados com gasolina, bioplásticos e produtos químicos. Mas também há um interesse crescente em usá-lo para produzir combustível de aviação sustentável porque seu fornecimento a longo prazo é relativamente estável. Isso oferece vantagens sobre o óleo de cozinha usado – um método mais estabelecido de fazer combustível de aviação sustentável, mas cujo fornecimento pode ser pouco confiável.
No entanto, a grande questão que paira sobre a Raízen e o setor de etanol do Brasil é o quão rápida será a transição para veículos totalmente elétricos, liderada pela China, Europa e Estados Unidos.
As vendas de carros elétricos no Brasil estão começando a decolar, representando uma ameaça ao negócio principal da empresa com etanol. Mas especialistas dizem que o problema maior é o impacto que uma divergência de longo prazo entre os mercados de veículos elétricos (VE) e biocombustíveis terá na inovação e competitividade futuras.
“Estamos nos afastando cada vez mais da fronteira tecnológica”, diz Luciana Castilla, pesquisadora de transição energética na Universidade de São Paulo. “Décadas atrás, o Brasil tomou uma decisão consciente de focar em biocombustíveis por causa da situação geopolítica na época. Quarenta anos depois, parece que eles não querem mudar de rota.”
Mas Mussa, como muitos no setor, defende o etanol como uma boa escolha para economias emergentes, que não têm recursos para investir na construção da infraestrutura para VE. “O Brasil é um país em desenvolvimento, tem que ser barato”, diz ele. “Quando olhamos para toda a equação, faz muito mais sentido [usar etanol]. Já temos uma indústria automobilística instalada. Temos a tecnologia de combustível flexível. Vejo um tipo diferente de desenvolvimento aqui, mais como na África ou na Índia.”
Ele acrescentou que o assunto dos VE tem menos ressonância no Brasil, porque a matriz elétrica do país já é quase 90% renovável, graças à sua competência em energia hidrelétrica, solar e, mais recentemente, eólica. “Para a Europa, não há outra saída”, diz ele. “Eles não têm biocombustível suficiente para descarbonizar, então entendo [por que usarão VE]. No Brasil, isso não é um problema.”
Encorajado pelas perspectivas do etanol de segunda geração – especialmente para uso em combustível de aviação sustentável – e pela forte demanda global, Mussa está confiante de que o crescimento da Raízen continuará.
“Vejo que estamos no momento certo, no lugar certo, com a planta certa: a cana-de-açúcar. Então, tudo está a meu favor”, diz Mussa. “Digo aos meus rapazes: ‘Se não conseguirmos sucesso, somos estúpidos’. Não temos desculpa, certo?”, brincou.
Matéria publicada pelo Financial Times no dia 26/04/2024, às 06h04 (horário de Brasília)