Recessão entra no radar dos EUA: como isso afeta as outras economias do mundo, incluindo a do Brasil?
Em meio à guerra comercial deflagrada pelo presidente Donald Trump, que nos 100 primeiros dias de seu segundo governo deu início a uma reviravolta na política de comércio exterior americana, a economia dos EUA se retraiu a um ritmo de 0,3% no primeiro trimestre, informou ontem Escritório de Análise Econômica (BEA, na sigla em inglês).
O dado derrubou as bolsas de valores mundo afora e colocou no radar a possibilidade de uma recessão nos EUA, o que poderia atingir a economia global, incluindo o Brasil. Afinal, os EUA são a maior economia do planeta.
A queda de 0,3% – na taxa anualizada, que procura extrapolar o desempenho do trimestre ante o trimestre imediatamente anterior para o equivalente a um ano, como prefere fazer o BEA, diferentemente do IBGE, no Brasil – foi puxada por um salto nas importações e uma queda no consumo do governo.
De acordo com os dados do BEA, as importações dispararam a uma taxa anualizada de 41,3% no primeiro trimestre, o maior aumento em quase cinco anos – as importações sempre pesam negativamente no cálculo do PIB de qualquer país.
O movimento é explicado, em parte, por uma corrida das empresas americanas para antecipar as compras do exterior e, assim, fugir das tarifas de Trump. Embora o tarifaço que impôs taxa mínima de 10% sobre todos os países tenha sido anunciado no início de abril pelo governo dos EUA, o primeiro trimestre foi marcado pelo anúncio de sobretaxas nas importações do México, do Canadá e da China.
Segundo Vítor de Holanda Jó, economista do Bradesco, isso ficou claro nos dados de março da balança comercial americana. Naquele mês, o déficit comercial dos EUA saltou 9,6% ante fevereiro, para US$ 162 bilhões, como informou anteontem o Escritório do Censo, outro importante órgão de estatísticas do governo americano.
Por isso, projeções atualizadas na véspera da divulgação do PIB ontem já apontavam uma retração – o consenso era uma queda de 0,2% na taxa anualizada, segundo a agência Bloomberg.
Embora já tenha dito, mais de uma vez, que sua política de comércio exterior poderia causar turbulências no curto prazo antes de “fazer a América grande novamente”, Trump rechaçou ontem qualquer relação entre a retração da economia e suas medidas. Numa postagem nas redes sociais, o presidente americano pediu a seus apoiadores para “serem pacientes”.
– Tenho que começar dizendo: isso é culpa do Biden. Não é do Trump – afirmou o presidente americano, durante uma reunião de gabinete ontem. – Vamos nos dar um desconto pelo primeiro mês, estávamos meio que nos acostumando com as coisas.
Em entrevista ao jornal Financial Times, a ex-secretária de Tesouro dos EUA Janet Yellen alertou que o risco de uma recessão nos Estados Unidos “aumentou muito” depois que as tarifas abrangentes de Donald Trump abalaram os mercados financeiros, os consumidores e as empresas.
Segundo ela, as tarifas sobre os principais parceiros comerciais terão “consequências tremendamente adversas” para os consumidores e as empresas americanas.
“Ainda não estou pronta para dizer que estou prevendo uma recessão, mas certamente as chances aumentaram muito”, disse Yellen, acrescentando que o direcionamento dos produtos chineses poderia “prejudicar” as indústrias americanas ao reduzir o fornecimento de minerais essenciais.
Yellen alertou que os EUA são “altamente dependentes da China para a maioria dos minerais essenciais que são usados em tecnologias de energia limpa, baterias e similares”.
“Ao impor tarifas enormes sobre eles, acho que potencialmente prejudicamos setores que poderiam ter uma chance”, disse ela.
Economistas divergem
Boa parte dos economistas discorda de Trump. Especialistas têm advertido que o tarifaço tende a encarecer os bens em geral consumidos nos EUA, o que reduzirá o poder de compra das famílias americanas, esfriando o consumo e, portanto, a economia.
Além disso, a desorganização do funcionamento do comércio exterior – somada ao vaivém na vigência das medidas, outra marca do governo Trump – leva incerteza para as empresas, que tendem a adiar investimentos e poderão demitir trabalhadores.
Tanto que há algumas semanas as projeções de crescimento econômico nos EUA vêm sendo revistas para baixo. A pesquisa de abril da Bloomberg sobre as projeções de analistas de mercado apontou para um crescimento esperado de 1,4% este ano, a metade dos 2,8% efetivamente registrados em 2024. Na edição de janeiro do levantamento, as projeções estavam em 2,2%.
Na semana passada, o Fundo Monetário Internacional (FMI) anunciou uma revisão na projeção de crescimento econômico dos EUA para 1,8% este ano, 0,9 ponto a menos do que a estimativa anterior, feita em janeiro, de 2,7%.
Antecedentes não são bons
Economistas debatem agora se a economia americana poderá entrar em recessão. E, caso isso ocorra, em que magnitude. Para além da retração do primeiro trimestre, uma série de indicadores antecedentes – como são chamados, na teoria econômica, os dados que sinalizam um comportamento econômico futuro – sugere que os EUA podem estar à beira da recessão.
Em abril, o índice de confiança do consumidor do instituto de pesquisas The Conference Board caiu para 86 pontos, menor nível desde maio de 2020, auge da crise causada pela Covid-19. O Índice de Sentimento do Consumidor da Universidade de Michigan, um dos mais tradicionais, acumulou uma retração de 29% neste ano até abril.
Outro sinal de pressão sobre o consumo é a proporção de usuários de cartão de crédito que paga apenas o mínimo da fatura. No primeiro trimestre, essa proporção ficou acima de 11%, recorde da série histórica, segundo dados do Federal Reserve (Fed, o banco central americano) da Filadélfia, citados numa postagem por Torsten Sløk, economista-chefe da Apollo, gestora de recursos americana que administra US$ 750 bilhões.
Mais abrangente, o Índice Econômico Antecedente (LEI, em inglês), também do The Conference Board, recuou 0,7% em março, segundo resultado negativo após a queda de 0,2% de fevereiro. O LEI é composto por um conjunto de dez indicadores antecedentes.
Em março, a queda foi puxada por três deles: o índice de ações S&P 500, a média das expectativas dos consumidores sobre condições de negócios; e o Índice de Novas Encomendas da ISM (Instituto de Gestão de Suprimentos, na sigla em inglês).
O último é um típico indicador antecedente. O ritmo de novas encomendas da indústria sinaliza o comportamento da produção industrial meses à frente. Segundo o ISM, o Índice de Novas Encomendas registrou uma queda acumulada de 13% neste ano, até março.
Num comentário mais abrangente, publicado semana passada, Sløk mostra que grandes empresas abertas tiveram, no primeiro trimestre, as maiores quedas nos lucros desde 2020, destaca que as novas encomendas da indústria estão em “colapso” e aponta para uma “aguda” reversão nos planos de investimento das companhias.
Para o analista, a economia americana chegará ao verão do Hemisfério Norte, em meados do ano, já sob recessão.
‘Na ponta, mais pessimista’
O economista-chefe da gestora Quantitas, Ivo Chermont, também está mais pessimista, em parte por causa de três itens do PIB americano do primeiro trimestre que subiram fortemente: as importações, os investimentos em equipamentos e a formação de estoques.
– Os únicos lugares (do PIB americano do primeiro trimestre) que foram muito fortes têm esse cheiro de antecipação. Quando isso acontece, para mim, significa um clima de calmaria antes da tempestade – disse Chermont.
Ele não descarta a possibilidade de recessão:
– Estou na ponta mais pessimista. Pode vir uma recessão, e pode ser uma coisa meio abrupta. Não é como uma recessão provocada pela política monetária, que demora para bater na economia.
FMI ainda não vê o pior
No lado dos menos pessimistas, ao anunciar as revisões para baixo nas suas projeções, na semana passada, o economista-chefe do FMI, Pierre-Olivier Gourinchas, disse que sua equipe não via recessão. O relatório do The Conference Board sobre o LEI de março ressalta que “os dados não indicam que uma recessão tenha começado ou esteja prestes a começar”.
Além disso, a demanda doméstica americana, medida pela soma do consumo com os investimentos, não desacelerou, lembrou Holanda Jó, do Bradesco. A equipe do banco brasileiro também não projeta recessão para os EUA.
– A gente não tem recessão, mas tem uma desaceleração razoável do crescimento, puxada pelas empresas, e não pelas famílias. Ela é puxada pelo lado dos investimentos, antecipação de importações e formação de estoques e tudo isso – disse a superintendente de Pesquisa Econômica do Bradesco, Myriã Bast, lembrando que uma forte desaceleração da economia global jã será ruim para todos os países.
Temor faz preço nos mercados
Para além do debate entre economistas, investidores reagiram negativamente nos mercados financeiros. No início do pregão de ontem, os índices de ações tombaram, mas houve uma recuperação no fim do dia de negociações. O tradicional índice Dow Jones acabou subindo 0,35%, enquanto o S&P 500, que chegou a ceder 2%, encerrou em leve alta de 0,15%. O Nasdaq recuou 0,09%.
Parte dos investidores começou a apostar que o Federal Reserve (Fed, o banco central americano) poderá adotar uma política de juros mais flexível, para evitar uma recessão, disse Fawad Razaqzada, das corretoras City Index e Forex.com, à agência Bloomberg.
Outros economistas, como Chermont, da Quantitas, e Myriã, do Bradesco, veem a autoridade monetária americana numa situação mais complexa, em meio a um debate sobre o quanto os efeitos inflacionários do tarifaço serão mais temporários ou duradouros.
Crescimento na Europa
Enquanto Trump coleciona agruras nos EUA, na Europa a economia da zona do euro cresceu mais do que o esperado no início do ano, embora ainda não tenha sentido todo o impacto das tarifas impostas pelo governo americano às suas exportações para o maior mercado consumidor do mundo.
O Produto Interno Bruto (PIB) do primeiro trimestre aumentou 0,4% em relação ao trimestre anterior, o dobro do registrado no último trimestre do ano passado, segundo dados publicados ontem pela Eurostat, órgão de estatísticas do bloco. Analistas consultados pela Bloomberg tinham estimado alta de 0,2%.
O resultado indica que o bloco de 20 países expandiu sua produção por cinco trimestres consecutivos e dois de seus membros mais importantes — Alemanha e França — voltaram a crescer.
No entanto, sondagens empresariais apontam para um enfraquecimento, causado pela incerteza em relação às intenções dos EUA, agravada pelo impacto concreto das tarifas já aplicadas.
O economista-chefe do Banco Central Europeu (BCE), Philip Lane, afirmou na semana passada que é improvável que as tensões comerciais levem a uma recessão na zona do euro, embora tenha reconhecido que a expansão será menor do que a esperada.
Alemanha e França registraram aumentos do PIB de 0,2% e 0,1%, respectivamente, no primeiro trimestre, em linha com as expectativas. A Itália cresceu acima do previsto, de 0,3%.
Nesta semana, foram divulgados dados otimistas em toda a zona do euro: as estimativas para Espanha, Países Baixos, Bélgica, Áustria e Finlândia indicam aumento do PIB entre 0,1% e 0,6%.
Indústria na China recua
Ainda assim, essas avaliações sobre a saúde econômica da Europa dizem pouco sobre as consequências das tarifas dos EUA, a maioria das quais foi anunciada em 2 de abril. A incerteza é total, já que muitos dos encargos foram suspensos à espera do resultado das negociações.
Mas a China já começa a sentir os efeitos das tarifas. A atividade industrial no país caiu em abril, após dois meses de expansão, segundo dados oficiais divulgados ontem.
O índice de gestão de compras (PMI), um indicador-chave da produção industrial, atingiu 49 em abril, de acordo com o Escritório Nacional de Estatísticas (ONE). O número ficou abaixo do limite de 50 que separa expansão de contração. Além disso, o PMI de abril ficou abaixo dos 50,5 de março — o maior em 12 meses — e foi inferior aos 49,7 projetados por uma pesquisa da agência financeira Bloomberg.
Matéria publicada no Globo, no dia 01/05/2025, às 04:00 (horário de Brasília)